quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas...

Esses dias fiz mais uma aquisição da tia Laura Gutman: "O poder do discurso materno".

Ui, tia Laura é daquele tipo de mulher que podia enganar como cartomante, jogadora de búzios e amarração para o amor. Brincadeiras à parte, ela escreve coisas que tocam em feridinhas bem doloridas às vezes! Tão profundas e tão óbvias que eu sempre penso: "Como é que não pensei nisso antes?"

Na verdade, o que me impulsionou a comprar de vez esse livro (e o "Mulheres que correm com os lobos", mas esse ainda não comecei) foi quando me joguei no Coaching para Mulheres da Anna Gallafrio. Não sabia muito bem o que encontraria por lá, e me surpreendi me deparando com a Luciana que realmente sou. Que choque. Como eu sou quando eu sou o melhor? O que eu faço de melhor? Uau! Essa sou eu! Nossa. ESSA-SOU-EU. O que eu faço com a Luciana inventada, a Luciana que me vestiram até então? Abandono? Que medo, é mais fácil continuar vestindo algo que eu sei que já está pronto para mim.
Sentimentos e vontades muito legítimas foram percorrendo minhas veias desde então. Sabe aquela sensação de arrepiar a espinha, de levantar os pêlos do corpo, de felicidade e ansiedade? Eu nunca senti tanto isso quanto agora. Aquelas vontades que vêm láaaaaaa de dentro, e não do externo, porque você viu alguém fazer, ou viu alguma imagem e projetou em você. É assim que me pego desde esse percurso.
Bem, comecei a ler o livro logo depois do Coaching e tudo começou a se entrelaçar de vez. Claro, a dar muitos nós também. Nós estes que são concretos, fáceis de serem visualizados (mas não são fáceis de serem desatados).

O livro fala basicamente, e a grosso modo, do poder dos discursos que nos são oferecidos, desde o ventre até sempre, principalmente na infância. Nas roupas e personagens que vestimos a fim de suprir uma segunda ou terceira ou um conjunto de pessoas. E olha, isso impreguina. Tá achando que pra ser ator precisa de um DRT? Nada! Basta contar sua história.

Dentro dos exemplos que o livro oferece, comcei a traçar um paralelo com minha história, cronologicamente, de acordo com os nomes que me foram dados. É assustador, é triste, é bem revoltante muitas vezes. Na verdade, é muito profundo mergulhar nessas sombras, e que facilmente poderia passar a vida ali, "confortável", sem mexer um pauzinho, porque dá um chacoalhão lá no âmago e não é fácil lidar com isso. É você descobrir que tem mais linha pra ser puxada e ter que lidar com seu verdadeiro eu. Aquele que não mente, que é puro e essencial. Mas que dá um trabalhão para ser.
E então por que raios eu quis catucar esse angu? Porque velhas roupas não combinam mais comigo. E tudo começou de trás para frente, dentro da cronologia da minha vida.

Filha, sempre minha filha. Ela realmente veio pra colocar o lado que eu imaginava ser o certo lá no lugar dele. Do avesso. E vice versa. Desde que a Sarah nasceu, ou melhor, desde o trabalho de parto/parto eu me vi totalmente numa pele que nunca tinha me visto. Um ser que urrava pra sair, que pedia licença a força a qualquer sombra em mim colada, que estava a fim de contar pra mim mesma quem realmente era. E que continuou, e continua na marra tentando aparecer de vez. Prazer, Luciana, eu sou Luciana!

Um belo dia eu nasci, ganhei prontos nome, sobrenome e um monte de projeções do que era e seria, do mundo todo.

Um dia me disseram como ser feliz e prosperar. Era preciso fazer uma faculdade de administração para  ter estabilidade financeira. Aí eu fugi e fiz Publicidade, uhuu! Comecei a me desvincular do meu personagem aí? Não, porque eu não queria ser publicitária, eu queria ser atriz, mas de administração para artes cênicas eu corria o risco de ser queimada na fogueira dos lobos com pele de cordeiro.
Acabei a faculdade - aos trancos e barrancos. Diziam para mim que numa entrevista de emprego eu deveria falar que eu era pontual, organizada, perfeccionista, e lidava bem com pressão. Eu sempre conseguia estágios na área e empregos fixos muito bons, com possibilidades gigantescas de crescimento. Mas nunca consegui ficar mais de um ano neles. Apenas no primeiro, que fiquei até minhas primeiras férias e pedi demissão. Nesse primeiro emprego, que era como projetista de móveis, eu tinha apenas 17 anos e trabalhava que nem camelo, já que me diziam que eu era muito eficaz, eficiente etc e tal. Com 2 meses de empresa eu tive uma meningite. Hoje eu entendo o porque. A cada emprego que eu saía, eu saía frustrada, e muito muito aliviada. Porque era muita pressão e na real eu não suporto pressão, eu travo, eu choro. Fui pegando raiva de acordar cedo, de trânsito, de dormir pouco, de trabalhar. Por que trabalhar era isso, afinal? Sacríficio corporal, mental, espiritual. Porque trabalhar não era o que eu fazia no teatro. Na época eu já estudava teatro, e mergulhava fundo nele, mas ainda com meu personagem dado muito presente. A menina madura, que liderava os afazeres do grupo, mas que pelo menos era prazeroso algumas vezes. O estar no palco me deixava viver outros personagens que não os meus, mas não era isso que me encantava, era porque eu considerava um trabalho que se encaixava perfeitamente com minha realização pessoal e profissional. Mas me diziam que fazer aquilo não era trabalhar. Porque trabalhar é o martírio e o fardo que contei lá em cima. As coisas começaram a não fazer sentido na minha cabeça.
Com a gravidez, que veio no último semestre do curso, ora rolava um exorcismo e minha Luciana querida aparecia, ora os personagens comandavam. É muito intenso ficar grávida, então preferi manter meus personagens acomodados onde eles sabiam interpretar e fazer bem seu papel, era muita coisa para administrar. Como mandava o personagem, eu sonhava com a maternidade em tons pastéis, branda, serena, e eu, claro, dando conta da minha vida, da vida do bebê, da vida do Ângelo e da casa, como sempre consegui fazer. Como se não bastasse, fiz duas peças grávida para não perder a pose e o rebolado, e, antes mesmo da Sarah nascer, me comprometi até em fazer um espetáculo, no qual começaria a ensaiar quando a Sarah tivesse uns 2 meses. Hummmm! Poderosa! Senta lá Cláudia! Sim. Eu fiz esse espetáculo. Ensaiei muito tempo com minha filha no colo e olheiras quase no pé, e ficamos em cartaz 3 meses, quando ela estava com uns 8 meses. Eu estava fazendo o que gostava, o que queria? Não. Eu estava dando uma carga que não cabia em mim naquele momento. Não fiquei nada satisfeita com o resultado, passei o puerpério com expectativas totalmente fora da realidade, era uma briga sem fim entre o que eu era x o que eu sou. Ali. Nua. Pelada e sem bolso para me apoiar. Porque metade de mim sabia que era um momento de me cuidar e cuidar da Sarah, e a outra metade super heroína de sempre queria fazer tudo de uma vez, como sempre falaram que ela poderia fazer.

Aí me perguntam o que tem de tão transformador em parir que não tenha na cesárea. Estou num capítulo do livro que explica tão bem isso! Mas vou colocar em minhas palavras, em cima da minha vivência.
Ao longo dos anos e com a sociedade patriarcal ganhando cada vez mais peso, inclusive e principalmente em cima das religiões, a mulher começou a pertencer a qualquer um, a qualquer coisa, desde que não seja a ela mesma, entrar em contato com o corpo virou pecado. A submissão é algo que nos cerca em tudo. A opressão sexual é um desafio nosso de cada dia; "Fecha as pernas menina!" "Tira a mão daí, é feio pegar aí!." Quem nunca ouviu? A última coisa que tinha nos sobrado e que nenhum homem com H poderia jamais fazer era trazer uma pessoa ao mundo. E como não, o avanço da tecnologia usado para salvar vidas virou o instrumento da continuidade desse distanciamento da mulher consigo mesma. Equipamentos, equipes, instrumentos, luz, mesas, invasão, hospital, violência verbal, moral, sexual, obstétrica. O parto é fora da nossa zona de conforto mesmo. Porque hoje é assim, porque temos que lutar, em algumas horas de trabalho de parto, contra tudo o que foi imposto sexualmente (e todo o resto que já falei) desde que fomos gerados. Quem hoje se permite, pode e consegue viver o trabalho de parto respeitoso abre um portal impossível de ser fechado. Pode ser que fique lá sendo digerido por meses ou anos, mas está sempre batendo à porta para ser mais vasculhado. O que aconteceu no meu trabalho de parto? O que foi aquilo minha gente? Saber que eu andei pela maternidade pelada, vazando, urrando, vocalizando, agachando e animalizando é impressionante, mas não me parecia uma cena tão horrenda assim, começou a combinar comigo e não sabia porque. Só que não combinava com a cena social que eu vivia. As duas não se encaixavam. Depois de viver todo esse momento junto com o Ângelo, voltamos ao cenário conhecido. Nossa casa, nossa família, nossos amigos, tudo como era antes da Sarah chegar e provocar esse fuzuê, menos eu. Luta para amamentar, luta para tudo, luta contra tudo, contra todos. luta com meu antigo eu e com meu eu de verdade, cansei. Pô, cansa assim ser mãe? É ruim assim? Eu vivia reclamando que não conseguia fazer nada. Fazer nada o que? O que você gostaria de fazer? Eu gostaria de ser eu de novo, naquele comodismo que eu estava, tava bom, tava funcionando. E aquela voz da Luciana instigando a pular pra fora e desbravar o mundo real. Nossa, que tormento! Que delícia! Que cansaço. quero dormir..
A luta da entrega, da continuação da vivência do parto era diária. do contato, do pele a pele, de sentir um amor que eu temia em sentir. O colo que me faltava, o colo que era doloroso de dar, porque me passava o sentimento mais aberto e livre do mundo. Como é difícil amar de verdade!

Hoje, com outro ser no meu ventre, essa roupa está definitivamente com os dias contados, aliás, o que resta dela.
E que venham outras fusões e avalanches emocionais, tô aqui de peito aberto para parir tudo.